quarta-feira

IVANETE PEREIRA - UMA MULHER DE VALOR


D. Ivanete, Coordenadora Institucional da CUFA


Conhecem o ditado “pau que nasce torto, morre torto”? Ivanete Pereira, coordenadora da Centra Única das Favelas, a CUFA-RS é a prova de que quem nasce para fazer o bem, não muda por mais difícil que a vida se mostre.

Moradora da Vila Cruzeiro, em Porto Alegre, Ivanete não é mãe e porto seguro apenas para seus seis filhos, mas de muitos outros. Muitos deles a chamam de mãe de fato, como eu...

A menina que cresceu andando pelas ruas do país pensando que não tinha valor, se transformou em uma mulher guerreira que coordena o grupo de teatro Tumulto, formado por crianças e viabilizado pela CUFA, participa de grupos de apoio a mulheres, faz parte da campanha Crack Nem Pensar no estado e ainda se transforma em Lady Nete quando sobe no palco para cantar seu rap. Sou suspeita para falar, mas ela é incrível! Confiram...


Fernanda Rodrigues: Vamos começar do começo, onde a senhora nasceu?
Ivanete Pereira: Nasci na Chapada Diamantina, em uma cidade chamada Morro do Chapéu, no dia 10 de dezembro de 1960. Eu tinha uma família grande. Eu era a antepenúltima filha. Infelizmente, minha mãe faleceu em um parto e meu pai teve que doar os filhos. A situação ficou difícil, pois onde eu morava havia até onça na porta de casa para comer as criações.
Na Bahia se criava galinha, cabras, e as onças apareciam. E meu pai trabalhava retirado. Minha irmã mais velha tinha apenas 10 anos de idade e cinco irmãozinhos para cuidar. Nessa época na Bahia o regime escravo já havia terminado, mas apenas no papel, e minha mãe havia sido mucama de uma moça que se casou e, quando soube que ela faleceu, ficou com muita pena e pediu os filhos da minha mãe. Foi muito doloroso. Nessa época eu chamava minha irmã de dez anos de mãe.



FR: A senhora lembra dela, da sua mãe?
Ivanete Pereira: Tenho algumas lembranças. Dizem que ela foi muito guerreira, sofrida. Aos vinte e poucos anos ela já era mãe de seis filhos. Meu maior sonho era ver minha mãe, seu rosto... Naquela época não existia fotografia por lá, mas dizem que sou muito parecida com ela. Eu tenho essa esperança que um dia Deus me abençoe de alguma forma e eu possa saber como era minha mãe. Mas tenho a certeza de que ela foi muito valente.


FR:Então a semelhança entre vocês não era apenas física!
Ivanete Pereira:os homens faziam. Uma vez os Revoltosos passaram pela região. Ela estava sozinha, mas deu comida a todos eles, fez almoço para aqueles homens que comeram e foram embora sem fazer nada com nossa família. Isso mostra como era Dona Maria, guerreira e com postura.


FR: Ela ainda parece ser muito presente para a senhora, né?
Ivanete Pereira: Sempre. Eu tive uma infância muito difícil, sabe Fê... Eu apanhei muito... passei por muita coisa que me magoou, e sempre eu pensava: “mãe, vem me buscar”. Na hora do sofrimento a palavra era Mãe!
Hoje não entendo como uma mãe pode deixar de ser presente na vida de uma filha. A minha me fez tanta falta!


FR: Eu vi em uma entrevista de um filho seu que a senhora foi trocada por uma máquina de costura quando jovem, é verdade?
Ivanete Pereira: Eu fui jogada muito cedo nas ruas. Lá na Bahia as pessoas realmente negociavam, e até hoje negociam seu povo. Quando criança as pessoas me davam e me trocavam por qualquer coisa. Muito cedo me jogaram fora.
Aos cinco eu já trabalhava e se eu não fazia um bom trabalho, era trocada. Lembro-me de ouvir: “Essa negra não vale um Juá!”, mas eu sabia que dentro de mim eu tinha valor. Ninguém na família me deixava estudar, quando alguém engravidava, eu tinha que parar tudo para cuidar daquela criança que ia nascer. E se eu respondia, arrumavam minhas coisas e me mandavam embora. E o pior é que eu respondia...


FR: Por saber que estava certa?
Ivanete Pereira: Também. Uma vez uma lata de água furou e me bateram. Nesse dia eu disse que iria embora quando meu pai voltasse. E eu rezei muito para que ele aparecesse, mas ele não apareceu. E me mandara embora com uma trouxinha de roupa.


FR: Com quantos anos?
Ivanete Pereira: Uns nove... uma criança... fiquei na rua chorando embaixo de uma árvore até que fui acolhida por uma família que me ajudou.


FR: E a vida melhorou?
Ivanete Pereira: Não... a minha dor maior era que as pessoas para quem eu trabalhava não lutavam por mim. Ninguém lutava, nem minha família. E eu pensava: “meu Deus, eu não valho nada”! E eu me perguntava porque eu não valia nada, porque ninguém cuidava de mim.


FR: E quando Ivanete virou mãe?
Ivanete Pereira: Essa família que me acolheu mais tarde também me escorraçou. Uma das crianças que eu cuidava se machucou e a mãe dele me bateu no rosto... várias vezes... e me mandou embora! Eu fiquei revoltada, pois eu não conseguia cuidar de três crianças sendo criança também.
Fui embora e surgiu a oportunidade de eu ir para São Paulo. Perguntei para meu pai o que ele achava e ele disse: “Vá, bote o pé na estrada e veja no que dá tua sorte. Se der certo, fique. Se não der, volte. Aqui sempre terá arroz, feijão, farinha e pimenta pra você!” Mas a pessoa para quem eu trabalhava me disse para não ir, pois eu só iria arrumar uma barriga lá. Eu fugi e fui, e foi exatamente o que aconteceu!



FR: Engravidou?
Ivanete Pereira: Sim, com quinze anos tive meu primeiro filho em São Paulo. Quando fui para lá era pra ganhar dinheiro, mas quando cheguei não era nada daquilo. Me bateu uma dor, uma saudade, uma depressão, mas toquei a vida. Comecei a namorar e engravidei. Ele não queria responsabilidade e me vi sozinha mais uma vez, mas agora em São Paulo e com um filho.
Trabalhei até o dia de ir para a maternidade. Depois que ele nasceu minha vida começou a girar em torno dele. Voltei para a Bahia, meu pai me acolheu como nunca havia me acolhido. Ele queria até registrar meu filho para eu não ser mãe solteira, o que me fazia sentir muita vergonha. Eu não permiti, mas ele me ajudou muito! Foi nessa época que fiz minha primeira faxina, para registrá-lo. Cheguei a trabalhar em uma casa onde eu nem ganhava nada, era só a comida para ele. Hoje meu filho tem 33 anos.



FR: E depois desse primeiro filho, quando teve o retorno para o Sul?
Ivanete Pereira: Depois de voltar para minha cidade eu deixei meu filho mais velho lá e fui trabalhar em Salvador. Lá conheci o pai dos meus outros três filhos, dois homens e minha única filha. E foi quando comecei a sofrer a violência doméstica. No namoro era tudo maravilhoso, mas depois que os filhos nasceram tudo mudou! Foram 11 anos em que eu praticamente não existia.
Meu pai chegou a me visitar em Salvador e quando voltou para Morro do Chapéu ele começou a construir um puxadinho. Isso porque ele viu o que eu passava e sabia que eu não viveria com ele muito tempo. Quando perguntavam ele respondia: ”Isso será para minha filha poder viver com seus filhos quando vier embora”. Eu só soube disso depois que ele morreu...


FR: E foi difícil dar um basta nessa violência?
Ivanete Pereira: Sim, eu não me separava porque esperava que ele fosse mudar. A violência doméstica é muito terrível. Resolvi mudar no dia que vi uma mulher apanhando muito do marido e os filhos indo contra ele. Na hora eu peguei a minha vida e levei para a vida daquela mulher e vi meus filhos naquela situação. Lutando para que eu não fosse agredida. Então decidi que não era o que queria para mim e para meus filhos. Mesmo assim é difícil, acham que a mulher apanha por ser descarada, mas muitas não têm opção.
Fui chamada de descarada pelo meu próprio irmão. Eu também não tinha escolha, então ele me disse: “Vou te mandar um dinheiro e você o larga, me prova que presta”. Ele fez a parte dele e me mandou o dinheiro, eu fiz a minha... consegui romper com ele e fui para São Paulo tocar a vida. Trabalhei e tive mais dois filhos.



FR: E quando o Rio Grande do Sul entrou na vida dessa família?
Ivanete Pereira: Também fugindo da violência. Para tirar meus filhos dela. Meu irmão já morava aqui em Porto Alegre e viemos de São Paulo para cá. Meu irmão trouxe um dos meus filhos. A vida melhorou, mas meu irmão perdeu a firma onde trabalhava com meu filho e tudo ficou difícil novamente. Meu irmão voltou para São Paulo e meu filho ficou sumido aqui. Eu sofri muito. Eu cuidava das pessoas na rua, se eu visse alguém com fome, eu dava alimento, sem passagem para o ônibus, eu pagava. E rezava: “Deus, cuida do meu filho onde ele estiver”.
Ele não me procurava porque passou por tempos muito difíceis aqui. Até que um dia ele me ligou e foi uma emoção enorme! Nem acreditava que estava reencontrando meu filho! No ano 2000 vim conhecer Porto Alegre e gostei muito. Achei parecido com a Bahia de certa forma, vi uns rastafaris como eu no Gasômetro e pensei: é isso que quero para minha vida, é aqui que quero morar. Essa cidade me acolheu. Sou uma pessoa que sempre quer um colinho. E Porto Alegre me deu esse colo!


FR: E a Central Única das Favelas?
Ivanete Pereira: Um dos meus filhos conheceu o MV Bill e começou a fazer esse trabalho e me chamou para fazer parte. Novamente questionei meu valor e pensei “O que vou fazer?” Sempre fui doméstica, não estudei e não gosto de estar em lugar nenhum só por carteiraço. Eu tenho que estar ali pra fazer alguma coisa. Quando era nova fiz teatro na Bahia, então resolvi fazer teatro com esses meninos. Voltei a estudar, o teatro do Oprimido, técnica de Augusto Boal, e estamos tocando com oficinas semanais. Todos esses meninos têm uma história e eu aprendo muito com eles.



Lady iniciou na CUFA em Porto Alegre o projeto de teatro, com o Grupo Tumulto


FR: Quantas crianças são?
Ivanete Pereira: Ao todo são mais de 70 crianças. Tenho pessoas que também se uniram ao projeto e me ajudam. Eu os ajudo, mas eles me ajudam muito! Sempre que fazemos o bem para alguém, na verdade fazemos para nós mesmos, e não é diferente com o trabalho de transformação que faço com esses meninos.


FR: E quando nasceu a Lady Nete?
Ivanete Pereira: No início do trabalho com a CUFA um dos meus filhos me disse que o trabalho era ligado ao hip hop. Eu ao sabia o que era, pesquisei, e vi meu outro filho fazendo rima. Disse a ele que eu também sabia fazer! Começamos a cantar juntos! Como já existiam a Negra Li, a Nega Gizza, meu filho disse que eu seria diferente, seria LADY... A primeira vez que me apresentei foi no Gasômetro.
Quando entrei no palco me deu um branco de ver um dos meus filhos comigo cantando, o outro filmando, foi muito emocionante... eu no palco com meus filhos! Eu não lembrava a letra, mas no final deu certo! Cantamos “Os manos na função” e foi muito legal!


FR: Com tantas atividades a senhora ainda tem tempo para outras coisas??
Ivanete Pereira: Temos também a oficina de mulheres e ainda estudo muito! A criança sofrida dentro de mim chora muito ainda, mas eu cresci. Impediram aquela criança de fazer muita coisa, mas a mulher aqui vai ser difícil! risos Tenho objetivos. Lei muito a Bíblia há 20 anos, conheço as leis de Deus e to sempre estudando para conhecer também a dos homens. Fiz curso de promotora legal popular que me deu um embasamento muito forte, sei como defender uma criança e to lutando pelas que posso! Aprendi que ter um filho é uma dádiva de Deus e temos que cuidar deles, e muito bem! Eu luto por esses meninos...
Em cada um deles eu vejo a menina que fui e cuido como gostaria de ter sido cuidada. Já fui a Brasília e fico emocionada em saber que as idéias que dei naquelas discussões com mulheres do país todo viraram lei para melhorar nossa vida. É um orgulho! Aquela menina que todos diziam não valer nada... eu não valia nada... é emocionante ver que Deus me deu esses presentes.


FR: Me conte o sonho que aquela menina tinha e conseguiu realizar? E qual o sonho que a mulher valorosa de hoje ainda espera conquistar?
Ivanete Pereira: O sonho da menina está sendo realizado que é ajudar essas crianças. E hoje meu sonho é ver as drogas, e principalmente o crack deixar de existir. Temos que unir para destruir o crack e ajudar esses jovens! Tenho muitas pessoas que amo muito afetadas por essa droga, a cura é a prevenção e eu estou na luta contra ele.



Por Fernanda Rodrigues